11.9.08

Poemas que habitam a minha memória (I)

MANUAL PARA ASSASSINAR FRANGOS
de Martinho Santafé


Às vezes, era o Rio Paraíba do Sul
que desmesuradamente crescia.
E as ruas ficavam cheias de escorpiões,
cobras d´água, lacraias com mil pernas...
parecia um monstro epiléptico e barrento
numa corrida maluca até o mar.

A gente torcia para que o rio subisse mais,
cada vez mais,
para que alguma tragédia
se consumasse, como no cinema.

Queríamos ver casas desabando,
árvores arrancadas à força,
as meninas, descalças,
impedidas de ir à missa dominical,
bêbados patinando no caos,
arrastados até a foz de Atafona,
numa infinita poça de lama e cuspe
que mandávamos para o céu.

Estávamos prenhes de vida
e queríamos a morte de mentirinha.
Sonhávamos com o apocalipse doméstico,
com a bomba asfixiando nossos pré-sonhos.

O primeiro amor estava ao lado,
nas aulas do Liceu
que, às vezes,
assassinávamos com delicado prazer.

No verão de 66,
o rio ficou irado de verdade,
se emputeceu, invadiu o baú
onde eu guardava meus gibis
trocados antes das matinês do Cine Coliseu.

Adeus minha coleçãotão preciosamente inútil
de David Crocket, Buffalo Bill, Zorro,
Rock Lane, Cavaleiro Negro e etc.

E me lembro dessa grande enchente,
da aniquilação dos pessegueiros,
das parreiras, dos limoeiros, dos frangos,
da horta que minha avó tão bem cuidava.

Abius, mangueiras, bananeiras,
caramboleiras, formigas,
tudo se foi com o rio,
com essa referência geográfica
e conceitual que ainda hoje tento traduzir.

Tudo se foi com o boi morto
no meio da correnteza,
coberto de urubus.

E no radinho de pilha de s´eu Bertolino
(que, em uma canoa, ajudava as famílias
a recolherem seus pertences),
os Beatles cantavam “I wanna hold your hand”.

Comecei a crescer com os Beatles
(e eles comigo),
a respeitar o rio e a temer s´eu Leleno,
meu vizinho e flamenguista doente,
que nas tardes de domingo,
quando o seu time perdia,
enfiava a porrada na Dorotéia,
sua mulher - e maior torcedora do Flamengo,
por motivos amplamente justificados.

Também havia a Josete,
que ajudou a me descriar
e que tinha um namorado chamado Jomar,
um refinado sem vergonha.

Em 62, o Brasil foi bi-campeão
e Josete imaginava
Jomar fazendo gols nela.
Se Josete gozava, o fazia discretamente,
como os anjos gozam. No silêncio.

Josete, que hoje é avó,
era filha de Neco Felipe,
um negro caolho e feliz,
que organizava os forrós
em Conselheiro Josino,
interior de Campos dos Goytacazes.

Forrós animados com cachaça, lampiões,
sanfona e alguma voz desdentada,
uivando para a Lua, nas quentes madrugadas.

Além de Neco Felipe,
conheci outras pessoas felizes
que moravam naquela vila
no verdadeiro cú do mundo,
entranhada na miséria e nos canaviais
(os dois sempre andaram juntos),
com um cemitério
na beira da estrada.

Minha cabeça
se embaralhou toda:
- como é que as pessoas
podiam ser felizes
em Conselheiro Josino?

Como é que as pessoas
podiam ser felizes
naquela merda,
ao lado de um cemitério mambembe,
perto de um rio carregando tudo?

Como é que as pessoas
podiam ser ?
Mas as pessoas

eram

e algumas até se
foram.
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Me lembro do impacto de quando ouvi este poema a primeira vez. Era o IV FestCampos de Poesia Falada, onde eu apresentava um poema, e estava lá o próprio Martinho Santafé, poeta de Macaé, que recitou esta pérola. Ele havia ganhado o mesmo festival no ano anterior com este poema. Agora, em meu novo trabalho, o rio que carregava tudo, novamente se colocou diante de mim. E vai ser bom poder fazer algo de bom pelas pessoas que serão, pelas que são, e até pelas que já se foram.