21.9.08

canções que tocam no meu ipod (I)

INVENTO
Vitor Ramil

Vento
Quem vem das esquinas
E ruas vazias
De um céu interior

Alma
De flores quebradas
Cortinas rasgadas
Papéis sem valor

Vento
Que varre os segundos
Prum canto do mundo
Que fundo não tem

Leva
Um beijo perdido
Um verso bandido
Um sonho refém

Que eu não possa ler, nem desejar
Que eu não possa imaginar

Oh, vento que vem
Pode passar
Inventa fora de mim
Outro lugar

Vento
Que dança nas praças
Que quebra as vidraças
Do interior

Alma
Que arrasta correntes
Que força os batentes
Que zomba da dor

Vento
Que joga na mala
Os móveis da sala
E a sala também

Leva
Um beijo bandido
Um verso perdido
Um sonho refém

Que eu não possa ler, nem desejar
Que eu não possa imaginar

Oh, vento que vem
Pode passar
Inventa fora de mim
Outro lugar

Vitor Ramil e Marcos Suzano no disco Satolep Sambatown

--------------------------
Dia cinza
frio e chuva

pedalei

passei a Baía
pouso de lindo poema

passei o Aterro
chão do primeiro tombo

passei a Marina
morada de antigos sonhos

passei o MAM
residência do silêncio

cheguei ao aeroporto

na rampa aviões decolavam
pássaros de ferro desafiando a tempestade

e voltei

uma água de coco
uma canção sobre o vento
que soprou aqui por dentro

Dolfo, 21 de Setembro de 2008.

11.9.08

Poemas que habitam a minha memória (I)

MANUAL PARA ASSASSINAR FRANGOS
de Martinho Santafé


Às vezes, era o Rio Paraíba do Sul
que desmesuradamente crescia.
E as ruas ficavam cheias de escorpiões,
cobras d´água, lacraias com mil pernas...
parecia um monstro epiléptico e barrento
numa corrida maluca até o mar.

A gente torcia para que o rio subisse mais,
cada vez mais,
para que alguma tragédia
se consumasse, como no cinema.

Queríamos ver casas desabando,
árvores arrancadas à força,
as meninas, descalças,
impedidas de ir à missa dominical,
bêbados patinando no caos,
arrastados até a foz de Atafona,
numa infinita poça de lama e cuspe
que mandávamos para o céu.

Estávamos prenhes de vida
e queríamos a morte de mentirinha.
Sonhávamos com o apocalipse doméstico,
com a bomba asfixiando nossos pré-sonhos.

O primeiro amor estava ao lado,
nas aulas do Liceu
que, às vezes,
assassinávamos com delicado prazer.

No verão de 66,
o rio ficou irado de verdade,
se emputeceu, invadiu o baú
onde eu guardava meus gibis
trocados antes das matinês do Cine Coliseu.

Adeus minha coleçãotão preciosamente inútil
de David Crocket, Buffalo Bill, Zorro,
Rock Lane, Cavaleiro Negro e etc.

E me lembro dessa grande enchente,
da aniquilação dos pessegueiros,
das parreiras, dos limoeiros, dos frangos,
da horta que minha avó tão bem cuidava.

Abius, mangueiras, bananeiras,
caramboleiras, formigas,
tudo se foi com o rio,
com essa referência geográfica
e conceitual que ainda hoje tento traduzir.

Tudo se foi com o boi morto
no meio da correnteza,
coberto de urubus.

E no radinho de pilha de s´eu Bertolino
(que, em uma canoa, ajudava as famílias
a recolherem seus pertences),
os Beatles cantavam “I wanna hold your hand”.

Comecei a crescer com os Beatles
(e eles comigo),
a respeitar o rio e a temer s´eu Leleno,
meu vizinho e flamenguista doente,
que nas tardes de domingo,
quando o seu time perdia,
enfiava a porrada na Dorotéia,
sua mulher - e maior torcedora do Flamengo,
por motivos amplamente justificados.

Também havia a Josete,
que ajudou a me descriar
e que tinha um namorado chamado Jomar,
um refinado sem vergonha.

Em 62, o Brasil foi bi-campeão
e Josete imaginava
Jomar fazendo gols nela.
Se Josete gozava, o fazia discretamente,
como os anjos gozam. No silêncio.

Josete, que hoje é avó,
era filha de Neco Felipe,
um negro caolho e feliz,
que organizava os forrós
em Conselheiro Josino,
interior de Campos dos Goytacazes.

Forrós animados com cachaça, lampiões,
sanfona e alguma voz desdentada,
uivando para a Lua, nas quentes madrugadas.

Além de Neco Felipe,
conheci outras pessoas felizes
que moravam naquela vila
no verdadeiro cú do mundo,
entranhada na miséria e nos canaviais
(os dois sempre andaram juntos),
com um cemitério
na beira da estrada.

Minha cabeça
se embaralhou toda:
- como é que as pessoas
podiam ser felizes
em Conselheiro Josino?

Como é que as pessoas
podiam ser felizes
naquela merda,
ao lado de um cemitério mambembe,
perto de um rio carregando tudo?

Como é que as pessoas
podiam ser ?
Mas as pessoas

eram

e algumas até se
foram.
----------------------------------------------------
Me lembro do impacto de quando ouvi este poema a primeira vez. Era o IV FestCampos de Poesia Falada, onde eu apresentava um poema, e estava lá o próprio Martinho Santafé, poeta de Macaé, que recitou esta pérola. Ele havia ganhado o mesmo festival no ano anterior com este poema. Agora, em meu novo trabalho, o rio que carregava tudo, novamente se colocou diante de mim. E vai ser bom poder fazer algo de bom pelas pessoas que serão, pelas que são, e até pelas que já se foram.

8.9.08

inéditos XXIII

Escultor de Palavras

Na noite passada
enquanto nos amávamos
variando as posições do Kama Sutra sobre o lençol...

Tive a vontade de ser escultor.

Para talhar
em ferro, bronze, ouro, prata, madeira
a delicadeza feroz do nosso amor.

Deixar exposto às intempéries,
eternizado em praças,
ruas, museus, casas,

a perfeição de nossos encaixes.

Transformar esta vida
estes momentos de puro gozo

em arte.

Aos falsos doutores da Academia

Tenho certeza, de que o pouco que sei, ainda é bem maior, do que o muito, que eles acham que sabem.