22.12.06

poemas que dormem na estante IV

Mais um ano na estrada percorrida
Vem, como o astro matinal, que a adora
Molhar de puras lágrimas de aurora
A morna rosa escura e apetecida.

E da fragrante tepidez sonora
No recesso, como ávida ferida
Guardar o plasma múltiplo da vida
Que a faz materna e plácida, e agora

Rosa geral de sonho e plenitude
Transforma em novas rosas de beleza
Em nova rosas de carnal virtude

Para que o sonho viva da certeza
Para que o tempo da paixão não mude
Para que se una o verbo à natureza.

Vinícius de Moraes no livro Livro de Sonetos
Soneto da Rosa, Editora Record

20.12.06

poemas que dormem na estante III

(...)

Raramente tenho pensamentos próprios. Quero dizer
Pensamentos oriundos unicamente de minha pessoa.
Minha pessoa é muito mais fraca do que meus pés.
E minha pele e minhas mãos. Meu corpo sabe coisas
Que minha pessoa não. Então tenho pensamento corpo.
Às vezes meu pensamento se concentra em pessoas.
E não quer mais nada. São em geral não muito bons
Pensamentos.
A não ser quando é pensamento de uma boca.

A boca de uma pessoa é capaz de atrair meus mais belos
Pensamentos. O sexo e a voz. O pescoço.
Tenho mesmo fascínio por corpos.
Mãos e pele. Orelhas e odores.
Mas é a voz que mais em alguém me significa.
E atrai.

Palavras querem carne. Desejos querem nome.

(...)

Viviane Mosé no livro Desato
trecho do primeiro poema, Editora Record

19.12.06

poemas que dormem na estante II

(...)

Poesia, s.f.

Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos com
emprego de palavras imagens cores sons etc.
geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas
loucos e bêbados

(...)

Boca, s.f.

Brasa verdejante que se usa em música
Lugar de um arroio haver sol
Espécie de orvalho cor de morango
Ave-nêspera!
Pequena abertura para o deserto

Água, s.f.

Da água é uma espécie de remanescente quem já
incorreu ou incorre em concha
Pessoas que ouvem com a boca no chão seus
rumores dormidos pertencem das águas
Se diz que no início eram somente elas
Depois é que veio o murmúrio dos corgos para dar
testemunho do nome de Deus

Poeta, s.m. e f.

Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu
Espécie de um vazadouro para contradições
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como
um rosto

Sol, s.m.

Quem tira a roupa de manhã e acende o mar
Quem assanha as formigas e os touros
Diz-se que:
se a mulher espiar o seu corpo num ribeiro
florescido de sol, sazona
Estar sol: o que a invenção de um verso contém

(...)

Manoel de Barros no livro Arranjos para Assobio
trechos do Glossário de transnominações em que não se explicam
algumas delas (nenhumas) ou menos, Editora Record

poemas que dormem na estante I

Se não fosse porque têm cor-de-lua teus olhos,
de dia com argila, com trabalho, com fogo,
e aprisionada tens a agilidade do ar,
se não fosse porque uma semana és de âmbar.

se não fosse porque és o momento amarelo
em que o outono sobre pelas trepadeiras
e és ainda o pão que a lua fragrante
elabora passeando sua farinha pelo céu,

oh bem amada, eu não te amaria!
Em teu abraço eu abraço o que existe,
a areia, o tempo, a árvore da chuva,

e tudo vive para que eu viva:
sem ir tão longe posso ver tudo:
vejo em tua vida todo o vivente.

Pablo Neruda no livro Cem Sonetos de Amor
Tradução de Carlos Nejar, L&PM Pocket