1.5.08

Boaventura de Sousa Santos e a Escrita INKZ – anti-manifesto para uma arte incapaz

Esta postagem não é um poema inédito, nem uma canção que toca no meu rádio, nem um poema que dorme na estante, nem recortes do antigo blog algumas pegadas.

Esta postagem foi uma forma que encontrei de explodir ao mundo uma leitura que tem me acompanhado nas últimas semanas, a Escrita INKZ – anti-manifesto para uma arte incapaz, do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Um livro de poesias? Um livro de prosas? Ou um livro de indagações perante a condição cada vez mais precária do ser humano no mundo? Apenas uma arte incapaz coloca Boaventura. Estará a nossa geração cometendo os mesmos erros de nossos pais e avós e produzindo uma arte totalmente incapaz? Eu, sinceramente, acredito que vale dar uma parada em todas as engrenagens e olharmos um pouco ao nosso redor e refletir.

( pequena pausa diante à possibilidade de cada um )

Bem ... seguem trechos do Desfácio desta obra interessantíssima. Em breve postarei dela alguns poemas-latidos.

A minha geração não produziu nada de novo no domínio das artes. Isto não seria um grande problema se ela tivesse sabido usar produtivamente a sua esterilidade. Mas não foi o caso. Podia ter propiciado um novo encontro entre a arte e a vida. Devolver a arte a quem a trabalha quando trabalha. Mas tal não foi possível porque há páginas literárias, salas de concerto, departamentos de arte e de literatura, prêmios, galerias. A minha geração ficou assim condenada a celebrar a sua própria esterilidade e a usá-la para consumo interno. Por isso, já vimos tudo e, sobretudo, o déjà vu. Só não vimos artistas prontos a morrer. A minha geração não conheceu ninguém desse calibre. Em vez de morte, o cansaço. A minha geração foi feita de gente-cansaço, família-cansaço, sexo-cansaço, whisky-cansaço. Cansámos-nos para fugir ao imperativo da arte. Por fim, cansámo-nos para esquecer o cansaço. (...)

A Escrita INKZ não é poesia nem é prosa, não é pintura nem escultura, nem arquitectura. É uma arte incapaz. Não se sustenta nem se completa por si própria. Abre espaços para as manifestações artísticas dos outros, sejam eles artistas legais ou indocumentados, formais ou informais, oficiais, ou não-oficiais. (...)

A Escrita INKZ é incondicionalmente realista e a realidade que descreve pode ser pertubadora. Cada título ou estrofe é o princípio ou o fim de uma narrativa pessoal que cada leitor deverá imaginar e construir artisticamente. Porque o novo milênio ainda não conseguiu treinar a população em geral para este tipo de construção, há que ler e imaginar devagar. A Escrita INKZ é um medicamento escrito que deve ser consumido em doses individuais, segundo recomendações do próprio leitor. (...)

A Escrita INKZ é um conjunto de histórias rápidas e curtas para deixar espaço à imaginação artística de quem lê. (...)

A Escrita INKZ é uma arte incapaz porque só existe sob a forma de ausência ou emergência. A Escrita INKZ é uma ekfrase de tipo novo. A ekfrase é o termo de teoria literária para significar a descrição de uma obra de arte dentro de outra obra de arte. Por exemplo, um poema que descreve uma pintura. No caso da Escrita INKZ, a descrição é meramente potencial porque a obra de arte tem de estar ausente para que os leitores comuns e incomuns criem sobre ela as suas obras de arte. (...)

A Escrita INKZ parte da idéia que a subjectividade do novo milênio é constituída por seis mónadas: figura, cidade, andamento, momento, mulher nua e orador-nionguém. São o contrário dos heterônimos já que estão sempre presentes sob diferentes formas em tudo o que somos e, portanto, em toda a arte de que todos somos capazes. Todos somos figura, cidade, andamento, momento, mulher-nua e orador-ninguém. Cada um à sua maneira e segundo o tempo e o lugar. (...)

Além das seis mónadas, somos uma outra mónada, a mónada-cão. A mónada-cão é uma mónada muito especial porque não tem autonomia em relação às outras mónadas. A sua especificidade é ser a voz autônoma e livre das outras mónadas. Ou seja, cada mónada tem uma mónada-cão. Ao contrário do que pensava Leibniz, as mónadas não são entidades sem janelas. Têm janelas e essa janela é a mónada-cão.”

Boaventura de Sousa Santos no Desfácio do livro Escrita INKZ anti-manifesto para uma arte incapaz, págs. 11-17, Editora Aeroplano.

Observação:
Foram mantidas as normas e grafias de Portugal no recorte do livro.

Vocabulário :
Mónada: 1. Biol. Organismo ou unidade orgânica diminuta e muito simples. 2. Filos. Segundo Leibniz (v. leibniziano), cada uma das substâncias simples e de número infinito, de natureza psíquica (dotada de apercepção e apetição), e que não têm qualquer relação umas com as outras, que se agregam harmoniosamente por predeterminação da divindade, constituindo as coisas de que a natureza se compõe; enteléquia.

Enteléquia: Filos. 1. Segundo Aristóteles (v. aristotelismo), o resultado ou a plenitude ou a perfeição de uma transformação ou de uma criação, em oposição ao processo de que resulta tal criação ou transformação.
2. A forma ou a razão que determinam a transformação ou a criação de um ser.
3. Mônada (2).

Fonte: Dicionário Aurélio Eletrônico - Século XXI