13.5.08

poemas que dormem na estante XVIII

Aproveitando o tema da mentira, abordado no poema anterior do Boaventura em sua Escrita INKZ, divulgo um pedido do poeta Affonso Romano de Sant´ Anna, que teve o seu poema A Implosão da Mentira divulgado pela Internet de forma incompleta. Seguem as palavras deste grande poeta ...

"AMIGOS:

em tempos de " apropriação" e malversação da obra alheia, circula na internet e no youtube uma versão pobre e estropiada do poema meu A IMPLOSÃO DA MENTIRA, publicado originalmente durante a última ditadura militar. Peço aos amigos que contra ataquem em seus blogs, sites e toda forma eletrônica de comunicação divulgando essa verdade textual.

Em tempo: cuidado com os que dizem que a verdade não existe e que é arte qualquer coisa que qualquer um chama de arte. É mais uma mentira a ser ex/implodida."

Grato pela divulgação, Affonso Romano de Sant’ Anna.

A Implosão da Mentira
Affonso Romano de Sant’ Anna

Fragmento 1

Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

Fragmento 2

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial? mente,
mente partidária? mente,
mente incivil? mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constróem um país
de mentira
-diária/mente.


Fragmento 3

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partin-
do do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percuso.

Fragmento 4

Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.

Penso nas flores
cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente.


Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.

Fragmento 5

Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.

E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva.


(Poema publicado no JB em 1984, quando do episódio do Rio Centro e em diversas antologias do autor. Está em “ Poesia Reunida” L&PM, v.2)

11.5.08

Boaventura de Sousa Santos e a Escrita INKZ – anti-manifesto para uma arte incapaz (II)

As medidas humanas
têm algo de errado de origem
Desemedem-se com frequência

Ninguém se ocupa deste desespero
Mas sei que existe
Quando se senta num banco de jardim

Chega a casa mente passa adiante
Chega à cama mente adormece
Levanta-se mente desaparece
Não se imagina um cão
Mentir com tanta consistência

Boaventura de Sousa Santos, pg. 23, no livro A Escrita INKZ – anti-manifesto para uma arte incapaz, Editora Aeroplano.

1.5.08

Boaventura de Sousa Santos e a Escrita INKZ – anti-manifesto para uma arte incapaz

Esta postagem não é um poema inédito, nem uma canção que toca no meu rádio, nem um poema que dorme na estante, nem recortes do antigo blog algumas pegadas.

Esta postagem foi uma forma que encontrei de explodir ao mundo uma leitura que tem me acompanhado nas últimas semanas, a Escrita INKZ – anti-manifesto para uma arte incapaz, do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Um livro de poesias? Um livro de prosas? Ou um livro de indagações perante a condição cada vez mais precária do ser humano no mundo? Apenas uma arte incapaz coloca Boaventura. Estará a nossa geração cometendo os mesmos erros de nossos pais e avós e produzindo uma arte totalmente incapaz? Eu, sinceramente, acredito que vale dar uma parada em todas as engrenagens e olharmos um pouco ao nosso redor e refletir.

( pequena pausa diante à possibilidade de cada um )

Bem ... seguem trechos do Desfácio desta obra interessantíssima. Em breve postarei dela alguns poemas-latidos.

A minha geração não produziu nada de novo no domínio das artes. Isto não seria um grande problema se ela tivesse sabido usar produtivamente a sua esterilidade. Mas não foi o caso. Podia ter propiciado um novo encontro entre a arte e a vida. Devolver a arte a quem a trabalha quando trabalha. Mas tal não foi possível porque há páginas literárias, salas de concerto, departamentos de arte e de literatura, prêmios, galerias. A minha geração ficou assim condenada a celebrar a sua própria esterilidade e a usá-la para consumo interno. Por isso, já vimos tudo e, sobretudo, o déjà vu. Só não vimos artistas prontos a morrer. A minha geração não conheceu ninguém desse calibre. Em vez de morte, o cansaço. A minha geração foi feita de gente-cansaço, família-cansaço, sexo-cansaço, whisky-cansaço. Cansámos-nos para fugir ao imperativo da arte. Por fim, cansámo-nos para esquecer o cansaço. (...)

A Escrita INKZ não é poesia nem é prosa, não é pintura nem escultura, nem arquitectura. É uma arte incapaz. Não se sustenta nem se completa por si própria. Abre espaços para as manifestações artísticas dos outros, sejam eles artistas legais ou indocumentados, formais ou informais, oficiais, ou não-oficiais. (...)

A Escrita INKZ é incondicionalmente realista e a realidade que descreve pode ser pertubadora. Cada título ou estrofe é o princípio ou o fim de uma narrativa pessoal que cada leitor deverá imaginar e construir artisticamente. Porque o novo milênio ainda não conseguiu treinar a população em geral para este tipo de construção, há que ler e imaginar devagar. A Escrita INKZ é um medicamento escrito que deve ser consumido em doses individuais, segundo recomendações do próprio leitor. (...)

A Escrita INKZ é um conjunto de histórias rápidas e curtas para deixar espaço à imaginação artística de quem lê. (...)

A Escrita INKZ é uma arte incapaz porque só existe sob a forma de ausência ou emergência. A Escrita INKZ é uma ekfrase de tipo novo. A ekfrase é o termo de teoria literária para significar a descrição de uma obra de arte dentro de outra obra de arte. Por exemplo, um poema que descreve uma pintura. No caso da Escrita INKZ, a descrição é meramente potencial porque a obra de arte tem de estar ausente para que os leitores comuns e incomuns criem sobre ela as suas obras de arte. (...)

A Escrita INKZ parte da idéia que a subjectividade do novo milênio é constituída por seis mónadas: figura, cidade, andamento, momento, mulher nua e orador-nionguém. São o contrário dos heterônimos já que estão sempre presentes sob diferentes formas em tudo o que somos e, portanto, em toda a arte de que todos somos capazes. Todos somos figura, cidade, andamento, momento, mulher-nua e orador-ninguém. Cada um à sua maneira e segundo o tempo e o lugar. (...)

Além das seis mónadas, somos uma outra mónada, a mónada-cão. A mónada-cão é uma mónada muito especial porque não tem autonomia em relação às outras mónadas. A sua especificidade é ser a voz autônoma e livre das outras mónadas. Ou seja, cada mónada tem uma mónada-cão. Ao contrário do que pensava Leibniz, as mónadas não são entidades sem janelas. Têm janelas e essa janela é a mónada-cão.”

Boaventura de Sousa Santos no Desfácio do livro Escrita INKZ anti-manifesto para uma arte incapaz, págs. 11-17, Editora Aeroplano.

Observação:
Foram mantidas as normas e grafias de Portugal no recorte do livro.

Vocabulário :
Mónada: 1. Biol. Organismo ou unidade orgânica diminuta e muito simples. 2. Filos. Segundo Leibniz (v. leibniziano), cada uma das substâncias simples e de número infinito, de natureza psíquica (dotada de apercepção e apetição), e que não têm qualquer relação umas com as outras, que se agregam harmoniosamente por predeterminação da divindade, constituindo as coisas de que a natureza se compõe; enteléquia.

Enteléquia: Filos. 1. Segundo Aristóteles (v. aristotelismo), o resultado ou a plenitude ou a perfeição de uma transformação ou de uma criação, em oposição ao processo de que resulta tal criação ou transformação.
2. A forma ou a razão que determinam a transformação ou a criação de um ser.
3. Mônada (2).

Fonte: Dicionário Aurélio Eletrônico - Século XXI